sábado, março 03, 2007


Amanhecendo Bêbado em Zuma Beach


Quando o Celso me convidou para escrever resenhas sobre meus discos preferidos aqui no Dead Man and Lollypops, me senti honrado e instigado a voltar a escrever sobre música, sobretudo acerca das sensações que alguns discos me suscitaram e ainda suscitam. Durante algum tempo eu as escrevia no meu modesto Museu de Tudo, mas a displicência e a indisciplina constantemente me sabotavam por lá.

Assim, pensei que meu primeiro disco aqui deveria ser um disco significativo, desses que mudam nossa vida ou que nos desenterram quando a areia já bate na ponta do queixo. Assim é “Zuma”, assinado por Neil Young & Crazy Horse. E digo que “desenterrar” é um termo bastante provável para este disco de 1975.

Depois de “Harvest”, lançado em 1972 e grande sucesso comercial de Young, alguns eventos desviaram um tanto a trilha que começava a ser desenhada em sua carreira. As mortes recentes de Danny Whiten, guitarrista do Crazy Horse, e de Bruce Berry, roadie e amigo de Neil Young, encaminharam discos obscuros e melancólicos que se afastavam em grande parte do caminho ensaiado por “Harvest”.

Se esse “desvio” desarrumou o tino comercial dos discos do canadense, permitiu a realização de discos essencialmente belos e profundos, como “On The Beach”, de 1974, desprezado pela crítica e público, porém dos trabalhos mais maduros e íntimos de Young, conseqüentemente um de seus melhores e de meus preferidos.

Mas “Zuma” é o que vem ao caso. É esse disco que retira Young da reflexão sombria e permite que a energia seja extravasada. O disco está cheio de guitarras sujas e novas composições de Young. Porém, “Zuma” traz nova peça fundamental para os anos futuros: a guitarra de Frank “Poncho” Sampedro, que passou a substituir o Danny Whiten.

“Zuma” apresenta composições de Young em parceria com o Crazy Horse e a força da guitarra de Poncho Sampedro, um novo traço para o que viria a ser chamado de “grunge” em anos futuros.

Particularmente, acho que as guitarras desse disco são das melhores coisas que ouvi na música dos anos 70 e mesmo de outros tempos. Gosto de ouvir os riffs rasgados de “Barstool Blues” e o movimento hipnótico de “Cortez the Killer”. “Zuma” tem algumas das canções que não poderiam ficar fora de qualquer trilha sonora para cortar um coração, por mais piegas que isso possa parecer: “Pardon my Heart” ainda me emociona, sobretudo com Young entoando timidamente os versos “Pardon my heart/ if I showed that I care/ but I love you more than moments/ we have or have not shared”.

“Through my Sails” é outra dessas músicas inesquecíveis. No disco ela tem o importante papel de contrastar com as guitarras mais arrasadoras oferecendo todo o lirismo vocal de David Crosby, Stephen Stills e Graham Nash, nomes inevitáveis na obra de Neil Young. “Through my Sails” deve nos levar para além de Zuma, e faz isso indiscutivelmente.

O processo de realização de “Zuma” é cercado de histórias curiosas, como não poderia deixar de ser. As mais importantes dizem respeito aos porres gigantescos de Young e Sampedro à beira da praia, Zuma Beach. Young conta das inúmeras vezes em que acordava mergulhado em papéis cheios de anotações de letra e música, mal recordando as aventuras da noite anterior. Essas anotações viraram este disco, dos meus mais queridos.

Young acordou à beira do mar em Zuma Beach. Aqui estou eu, também acordado. Vou ouvir “Looking for a Love” cantando muito alto, como tem de ser.

Aqui

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Sticky Fingers - Rolling Stones (1971)


Sexo, drogas e rock'n'roll. Haveria forma melhor de compensar o longo hiato que eu e o Alexandre impusemos ao Deadmen? Creio que não. E retomo este blog com um disco canônico. O álbum número 15 na discografia oficial desta lenda viva (literalmente) da música universal. Sticky Fingers é um marco na história dos Stones. Para começar é o disco onde Mick Taylor estréia oficialmente. Chamado para substituir Brian Jones, que havia deixado a banda em 1969, ele participara de algumas canções em Let It Bleed (1969), mas é neste álbum que ele passa oficialmente a fazer parte dos Stones. Egresso da John Mayall's Bluesbreakers, Taylor, coincidentemente ou não (creio que não), faz parte da fase onde o Blues aparece com mais força nas composições da dupla Jagger/Richards. Claro, o Blues sempre fez parte da musicalidade da banda. Basta ouvir os primeiros trabalhos recheados de covers de Blues, excelentes, vale ressaltar. Essa fase tem duas obras-primas: este álbum e o seguinte, o duplo Exile On Main Street (1972). Mas, voltemos a Sticky Fingers. O álbum já começa a instigar pela capa, propositalmente sexual, que provocou comoções na sociedade à época. A capa, todavia, é só o começo. O álbum inteiro orbita na tríade citada no início deste post. Sexo, drogas e rock'n'roll são a alma desta obra. Os temas permeiam todas as músicas. Para citar çlássicos incontestes, indico a audição atenta de Brown Sugar, Sister Morphine, Wild Horses (minha predileta neste álbum) e Can't You Hear Me Knocking, com sua guitarra eternizada nos ouvidos de qualquer ouvinte de rock que se preze. Recomendo ainda I Got The Blues e Dead Flowers. Uma obra primorosa de uma banda única por incontáveis motivos. Um disco para ser ouvido, bebido prazeirosamente, sorvido em doses inumeráveis. Você pode ouvi-lo totalmente sóbrio, porém garanto que após alguns pontos percentuais de álcool misturads ao sangue ele soa muito melhor. Se estiver bem acompanhado(a), então, falar o quê? Para se arrepiar, para gritar, para sentir todo o prazer que a música pode proporcionar. E lhe garanto, leitor(a): não é pouca coisa.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

As Aparências Enganam



Começar um post sobre rock com um clichê desses pode parecer estranho, mas foi a melhor expressão que eu encontrei para resumir o álbum de hoje, A Mão de Mao, lançado em 1987 pela Epic/CBS pelo Metrô. Tudo bem, o passado os condenava. O disco Olhar, de 1985, a despeito de ter feito um grande sucesso com músicas como Beat Acelerado e Tudo Pode Mudar, era mais um de vários discos lançados à época, no rastro da new wave americana. Um disquinho convencional, sem maior importância. A banda formada por franco-brasileiros dissolve-se e sua vocalista Virginie lança um trabalho solo, significativamente intitulado Má Companhia (não ouça!). Dois anos depois, eis que ressurge o Metro (agora sem acento) com o disco em questão. Nos vocais a prmeira surpresa: um português de nome Pedro Parq, egresso da banda Mler If Dada, expressivo representante do underground lusitano, com uma voz potente e muito boa, além de letras totalmente inovadoras para o cenário nacional. A Mão de Mao é um disco experimental. Novas sonoridades, novos instrumentos, guitarras entre o psicodélico e o punk (isso mesmo!) e diversas referências literário-musicais, fazem deste disco um dos melhores do rock nacional e injustamente esquecido por crítica e público. Músicas como Ahnimais (Wiss), A Mão de Mao e Habhitantes têm em suas letras forte influência da linguagem poética contemporânea, com textos desfragmentados e vários experimentos sintáticos. Já Gato Preto, a única que tocou em algumas rádios é cheia de elementos míticos e Lágrimas Imóveis é puro lirismo. É um disco que vale a pena ser ouvido. para provar que nem tudo é o que parece. Reforça esta recomendação o fato de que a banda lançou, em 2002, um novo disco, Déjà Vu, com Virginie e o pop superficial de volta. Pena que músicos com tanta qualidade foram desperdiçados desta forma. Quanto ao Pedro Parq, desconheço seu destino atual, mas no pouco tempo que andou por aqui deixou a marca de sua inteligência e ousadia no rock brasileiro.

terça-feira, janeiro 31, 2006

Nick Cave & The Bad Seeds - Kicking Against The Pricks (1986)



Um dos melhores álbuns de covers de todos os tempos. Bastaria para definir o terceiro trabalho de Nick Cave. Este australiano deixou sua marca inconfundível na história do rock, com sua voz grave e soturna, suas letras em prosa narrativa, sua fixação em temas religiosos, morte, amor e violência, sempre sob uma ótica bizarra e heterodoxa, e muitíssimo bem acompanhado pelos Bad Seeds: Blixa Bargeld, Mick Harvey e Tommy Wydler. Além do álbum a ser comentado hoje, Nick Cave tem, a meu ver, mais 6 momentos fundamentais: sua estréia, em 1984 com From Her to Eternity; seu segundo disco, The Fisrstborn Is Dead, de 1985; o perfeito Tender Prey, de 1988; Let Love In, de 1994; The Boatman's Call, de 1997, centrado no rompimento com PJ Harvey e o excelente No More Shall We Part, de 2001. Nick Cave é claramente influenciado por outro ícone da música, Leonard Cohen, já comentado n'O Cárcere das Asas anteriormente, e faz desta influência uma de suas grandes qualidades artísticas. Poucos são tão sombrios e tão belos como os discos deste cantor/compositor único. Kicking Against The Pricks é um trabalho lapidar. Passeando com habilidade por diversas vertentes musicais, Cave revisita magnificamente canções díspares como Something's Gotten Hold of My Heart, de Gene Pitney, um hit pop e All Tomorrow's Parties, do Velvet Underground. Há ainda outra pérolas no CD: Hey Joe, eternizada por Hendrix; I'm Gonna Kill That Woman, de John Lee Hooker; The Singer, de Johnny Cash; Black Betty, de Leadbelly e The Hammer Song, de Alex Harvey. Um disco imperdível, portanto. Com ele, Cave firma-se no universo da música como um intérprete versátil e qualificado, além da promessa de grande compositor (à época), confirmada posteriormente pela seqüência de trabalhos de alto nível que produziu. Há ainda uma curiosidade interessante. Nick Cave gravou no Brasil o álbum The Good Son, em 1990, uma obra marcada por referências religiosas, incluindo um hino evangélico, cantado em português, Foi Na Cruz. Cave casou com uma brasileira, neste período. Com certeza o rock perderia bastante de seu lado mais sombrio, mais melancólico, sem a intervenção poderosa de Cave e sua banda, uma voz gutural que canta a morte, a dor, a fé (ou a falta dela), alternando baladas pungentes com rocks nervosos, à maneira do meste Iggy Pop, outra influência fundamental. Cave deve ser ouvido atentamente, suas letras são textos sempre cuidadosamente escritos, os arranjos de suas canções são invariavelmente belos e a dor que ele transmite rasga a carne de quem ouve. Por tudo isso, um nome escrito com letras maiúsculas na história do rock.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Pink Floyd - Animals (1977)


Apesar do Pink Floyd não ser uma das minhas bandas prediletas, este álbum - de 1977, décimo na discografia da banda, lançado imediatamente após dois álbuns considerados obras-primas da banda, Dark Side of The Moon, de 1973 e Wish You Were Here, de 1975, e antes do aclamado The Wall, de 1979, - sempre me impressionou, desde a primeira vez que o ouvi, nos anos 80, ainda adolescente. À primeira audição já fui capturado pela atmosfera sombria e desolada de todas as canções (5 na verdade), bem diferente do ambiente quase doce que envolvia o disco anterior, excelente por sinal. Animals é um trabalho amargo. As canções, com nomes de animais, dissecam, sem lapidar, a vida do ser humano, sua va(l)idade, suas angústias. É, de toda a história da banda, o álbum que mais me instiga, mais me incomoda, mais me fascina. Mais, inclusive, do que o trabalho de estréia da banda, The Piper At Gates of Dawn, de1967, ainda sob a influência genial de Syd Barrett. Se você não conhece, ou conhece pouco o Floyd, Animals não é para você. É um trabalho difícil, hermético, concebido a partir da cabeça conturbada de Roger Waters, e exceutado com brilhantismo pelo guitarrista David Gilmour. O teclado de Richard Wright tem papel secundário desta vez. É um Pink Floyd atípico. Com guitarras falando mais alto que teclados, Animals tem muito mais elementos melódicos do blues do que do rock progressivo, no qual a importância do Floyd é inegável. O álbum começa com a parte 1 de Pigs On The Wings, apenas voz e violões, "zig zag our way through the boredom and pain", com pouco mais de 1 minuto, que serve como overture para magnífica Dogs, com 17 minutos de puro rock'n'roll, de um niilismo assustador, com guitarras e efeitos perturbadores e que termina, inspirada provavelmente em Howl de Allen Ginsberg perguntando: "Who was born in a house full of pain / Who was trained not to spit in the fan / Who was told what to do by the man / Who was broken by trained personel / Who was fitted with colar and chain / Who was given a pat on the back / Who was breaking away from the pack / Who was only a stranger at home / Who was ground down in the end / Who was found dead on the phone / Who was dragged down by the stone", assim mesmo, sem pontos de interrogação, como em Gertrude Stein. Depois de ouvir Dogs, já nocauteados, ainda somos atropelados pela ira de Pigs (Three Different Ones) e pela iconoclastia de Sheep: "The Lord is my shepherd, I shall not want / He makes me down to lie / Through pastures green he leadeth me the silent waters by / With bright knives he releaseth my soul / He maketh me to hang on hooks in high places / He converteth me to lamb cutlets / For lo, he hath great power, and great hunger / When cometh the day we lowly ones (...) Bleating and babbling I fell on his neck with a scream / Wave upon wave of demented avengers / March cheerfully out of obscurity into the dream". O álbum é encerrado com a parte 2 de Pigs On The Wing, um complemento abrandado à parte 1. Eu tenho este álbum há 22 anos e o ouço periodicamente, para lembrar que o bom rock'n'roll não tem regras, não tem rótulos, pode fazer dançar, pode fazer pensar mas, acima de tudo, é música de primeira que precisa assustar, atordoar, despertar desejo e fúria, calor e medo, fazer você gastar seus últimos trocados, ou seus milhões, apenas pelo prazer de ouvi-la. E, falando em prazer, este disco é um orgasmo intenso, e dói.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Rock Nacional - Parte II


O post sobre o Hojerizah, na semana passada, inicia uma série em que falarei sobre algumas bandas que considero essenciais para o conceito de Rock Brasileiro. Hoje a banda da vez é outra banda carioca, também com seus principais trabalhos lançados em 1987 e 1988, o Picassos Falsos, formado por Humberto Effe (voz e violão), Luís Gustavo Corsi (guitarras, violões e cavaquinho), Zé Henrique (baixo) e Abílio Azambuja (bateria), pioneira na mistura de elementos regionais como samba, soul, afoxé e maracatu ao rock'n'roll tradicional, caminho depois trilhado com brilhantismo pelo movimento mangue-beat comandado por Chico Science e Nação Zumbi e por Mundo Livre S/A, em Recife, Pedro Luís e A Parede, no Rio, e de forma menos brilhante por bandas como o Los Hermanos, também carioca. A estréia em disco do Picassos Falsos foi em 1987, e é deste incrível primeiro álbum, intitulado Picassos Falsos, que saíram os dois grandes momentos da banda, seu maior sucesso Quadrinhos, que fez parte da trilha sonora da série infanto-juvenil da Globo, Armação Ilimitada, e a belíssima Carne e Osso, com referências a Tim Maia e Ismael Silva, um arranjo fenomenal e uma letra brilhante, com passagens inesquecíveis como "Bamba balança, balança suas rédeas, / querem o meu leite e o suor das minhas tetas / Você me encontrou e fechou todas as portas, / bebe do meu leite, do suor das minhas tetas. / O meu coração, o meu coração, preso nessa cela abre as pernas / Da sua paixão / Enquanto feras estão soltas você me tortura, a cada carência / E a cada violento arranhão / Se pensa que isso é paixão, esqueça / Certas coisas não se sentem só no coração / Será que alguém entende o meu amor? /Você deve compreender o meu estranho jeito / De ser demente, escravo do seu corpo /Ou também acha esse o meu maior defeito?". Era um disco que já trazia todos os elementos que marcam o Picassos Falsos: arranjos inventivos, letras bem elaboradas e a busca por uma sonoridade própria, diversa de tudo o que se ouvia no boom dos anos 80. Muito bem recebido pela crítica e com um hit, o Picassos Falsos lança, em 1988, após uma grande enchente que assolou o Rio de Janeiro, seu segundo e melhor trabalho, Supercarioca, um disco que reforça a sonoridade já trilhada no primeiro disco, com o uso de muitos elementos de samba, incluindo uma homenagem a Noel Rosa em Marlene, sem perder a referência básica do rock. Supercarioca é um disco gostoso de ouvir, antes de tudo, mas não um trabalho fácil. As músicas sofisticadas não dispunham de apelo comercial, ficando a sua execução restrita a rádios independentes como a legendária FM Fluminense, e a gravadora (RCA, através do selo Plug) também não se dispôs a trabalhar um disco tão "difícil". Mas, canções como Bolero ("Sinto o mais distante porque o mais distante / É o melhor pra mim / Vejo belas nuvens, tão belas nuvens / Me carregam enfim / A vez que penso é a vez que choro / Por alguém bem mais distante / Que não vejo entre meus lençóis / Estive quase / Quase por lembrar / De um passado quando eu te via / Entre minhas mãos estávamos tão sós"), com sua melodia complexa e Rio de Janeiro ("Um herói surgiu por entre os escombros / Entre ferragens e palmeiras / Um herói surgiu por esses dias / Novos dias, velhos dias / Agora tudo se mistura / Alguém já parece ver / Poucos podem compreender / Alguém já parece ver / Quando ferve o sol desaba a chuva") e Fevereiro ("Enquanto meus olhos estavam perdidos / Brilhantes sem a luz do sol / Algo fervia minha cabeça / Quando nada lembra o carnaval / A verdade tarda mas um dia chega / Derrubando muitas casas / Já que hoje o morro / Não desce mas desaba / No meio da rua / Mostrando da maneira mais sutil / Quem faz o mais belo carnaval do planeta"), com sua aguda crítica social, marcaram de forma indelével esta banda como uma das grandes personagens do rock brasileiro. Basta ver que bandas consagradas pelo público de hoje, como Los Hermanos, fazendo algo que já se fazia, e melhor, diga-se de passagem, 15 anos antes, assumem o papel de renovadores do rock nacional. É preciso ser mais cuidadoso com a história. Se quiser ouvir rock com elementos de samba, numa mesclagem muito bem feita, busque Picassos Falsos, mesmo que se precise recorrer ao seu mais recente álbum, Novo Mundo, lançado em 2005, onde, mesmo sem repetir os grandes momentos do começo de carreira, a banda mostra maturidade para seguir no caminho que a identifica, em um trabalho muito superior aos daqueles que se dizem "inovadores".

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Rock Nacional - Parte I



A explosão do rock nacional ocorrida nos anos 80 já foi motivo de diversos artigos, livros, colunas e debates nos mais diversos meios de comunicação, e eu, amante confesso do rock'n'roll e tendo vivido ativamente essa década, que deu algumas das minhas bandas preferidas, como Echo and The Bunnymen, Jesus and Mary Chain, Sonic Youth, The Smiths, The Cure, The Sisters of Mercy, para citar apenas meia dúzia, resolvi falar um pouco de uma das melhores e menos conhecidas bandas nacionais. O Hojerizah, formado no Rio de Janeiro, em 1983, por Flávio Murrah (guitarra e a maior parte das canções), Toni Platão (vocais), Marcelo Larrosa (baixo) e Álvaro Albuquerque (bateria), inclui-se certamente entre as 5 melhores bandas de rock nacional já surgidas. Várias características faziam a diferença no Hojerizah: a voz lírica de Toni Platão, de cara sobressaía no cenário rock. Quem já ouviu a canção mais conhecida da banda, Pros Que Estão Em Casa, sabe bem do que estou falando; as guitarras de Murrah, com uma sonoridade única, segundo Artur Dapieve (in BRock, O Rock Brasileiro dos Anos 80, Ed. 34, 2000), uma mistura de Jimmy Page e Johnny Marr, e letras que iam desde a inusitada Canção da Torre Mais Alta, de Rimbaud, em tradução de Lêdo Ivo, até canções próprias verdadeiramente brilhantes, entre as quais podemos lembrar: a já citada Pros Que Estão Em Casa ("bom dia, boa tarde, good night / quero dar um tapa / de topete e cara, /vi nova york internada / meu amor nao deu em nada, / minhas sobrancelhas eriçadas, / e a essa altura do fato, / nem fumaça tem cano de descarga."); Senhora Feliz ("Abram suas alas / À dama do esplendor / Se ouvir um grito / De loucos ao redor / Eles são teus filhos, / Muitos filhos são / Senhora feliz és a mãe de um crime, senhora feliz / Bom e generoso e sorris / Quando esbofeteias e / Ofendes o corpo com os dias"); Passos ("você gosta de se olhar no espelho / você acaricia seu corpo / eu reneguei toda dor / que senti / e sou o ouro / fogo gelado / não consigo / entender meus passos"), todas do primeiro disco, Hojerizah, de 1987, que contava com a famosa imagem da navalha no olho, de Um Cão Andaluz, de Buñuel, e A Lei ("existe um lar que se descobre um mundo / envolve o risco de quem vê o fundo / não é azul / não é azul, sincero só em meu canto / por trás do globo que / reflete o poço / jogo a moeda que lhe pede o troco / recolho a mão que num momento erra / só por um sonho / tiveste naquela chuva / que não deitou / a rua em seu joelho, e acalentou / o pranto que brota intenso / daquele asfalto e colheis / um grão risonho e pleno / não o joio em que regas a lei / em quanto tempo se constrói um mundo /sem cicatrizes que / preservam o impuro / devolve em cor / devolve em cor, me entregue / só o encanto / que seja a face que / não se esgote rumo / a comunhão em que / se veste o culto / a solidão é uma paixão por si / dorme em meu canto / esquece aquela culpa que se lamentou / da curra pelo conceito de estar e se pôr / nas avenidas retas / desgovernado irei / qual a palavra certa? / será aquela que / atropela a lei"); Canção da Torre Mais Alta, já citada, e Avenidas ("Fugir, que a fere segue-te sim / Na névoa lisa e vã / Ocupas um nome / A consumir todo signo / Saliente face / Despe-te ante o vício / Avenidas, andas ao réu / Aveni / Humor descreves / Ao refletir seus pupilos / Hoje: a prece / Amanhã: seu delito / Avenidas, andas ao céu"), do segundo e último disco, Pele, de 1988. Infelizmente os dois discos, excelentes, com arranjo e produção de um refinamento raro, mesmo em dias atuais, nunca foram lançados em CD, restando duas opções para quem quiser ter o Hojerizah em casa: ou recorrer ao acetato, em sebos ou lojas altamente especializadas, ou adquirir a excelente coletânea Hot 20, com praticamente todas as canções dos dois álbuns, lançada em 1999 pela BMG, também fora de catálogo, mas encontrável em lojas especializadas, após procura cuidadosa. Poucas coisas do rock nacional foram realmente fundamentais, mas Hojerizah e Picassos Falsos, sobre quem falarei em outro post, nutriram de poesia o rock brasileiro, com uma qualidade pouco vista até a presente data, podendo ser colocados no mesmo patamar de outros grandes, como Barão Vermelho, Legião Urbana e Gang 90, com a poesia de Cazuza, Renato Russo e Júlio Barroso. Sem esquecer de Arnaldo Baptista, 15 anos antes. E compõem, sem dúvida, o maior momento do Rock Independente nacional, junto com o Fellini e mais quatro ou cinco bandas paulistas.